Terça-feira gorda
Gauna atravessou os jardins e, contornando o zoológico, chegou à Plaza Itália. Esperou um tempo pelo bonde 38; quando por fim apareceu, estava cheio de gente que voltava das corridas de cavalos. (O sonho dos heróis, Adolfo Bioy Casares)
Quando vi José sair de casa ainda havia sol forte, mesmo que já se percebesse a luz do dia em declínio. Ventava, estava quase fresco para fevereiro, e ao longe se escutavam cigarras aos montes. Ele morava a uma quadra da minha casa, num daqueles prédios baixos que contornam o largo, de três andares, sacadas estreitas, janelas amplas que dão para a rua; eu vivia à época com a minha mãe, na casa que fora da minha família, e naquele trecho da década havia mais casas que edifícios no bairro, ao menos naquela zona. Dali de onde morávamos pouco ouvíamos os ruídos das festas: elas aconteciam a pelo menos cinco, seis quadras da nossa rua e mesmo que fosse tão perto (ainda mais pensando agora, revisando distâncias), lembro que o som dos tambores, de toda a música, parecia se espalhar para outro lado, na direção do rio e para o leste, mas não para as nossas varandas.
Éramos vizinhos de rua, de bairro, nos conhecíamos há muito tempo, e há muito tempo já não éramos amigos. Em criança, dividíamos as brincadeiras de calçada, as caminhadas sem rumo pela cidade, por vezes até o porto, longamente, em outras por praças e parques mais ou menos próximos, até casas de pessoas conhecidas, parentes de um e de outro, gente que o nome já escapa, permanecendo só os rostos agora que lembro. Tínhamos grandes amigos em comum, amigos que aos poucos foram deixando a zona baixa da cidade, empobrecida desde a nossa infância. Dos amigos que dividíamos, a maior parte foi para os bairros do norte, ainda com a família; uns poucos para o sul, para casas que eram como chácaras, e ainda houve quem deixasse a cidade e até o estado. Ficamos José, eu e outros que, há vinte anos, eram nomes secundários na nossa rotina de círculos de giz no meio da rua, de gol a gol no campinho do Carmo, de excursões noturnas pelas travessas de luz amarela. Ele, no apartamento de três peças que um tio cedeu depois de longa negociação; eu a dividir os cômodos grandes demais, velhos demais, com a minha mãe e nossos cães.
Percebi que, naquele dia, ele passava de camisa aberta, talvez a mesma da noite anterior (havia deixado a roupa no vento, junto à janela?), e que andava como se tivesse dormido pouco; não era a caminhada de quem varou a noite inteira sem fechar os olhos, não parecia virado ou insone, mas sim se movia com o cansaço de poucas horas de cama, as horas mínimas para que saísse com alguma vontade de festa já no meio da tarde. A vida já havia se complicado para ele anos antes daquele carnaval. Vivia sozinho desde o outro ano, ou dois, e havia se revezado entre empregos no bairro, sem a duração necessária para que se acomodasse um pouco; e sem sorte, parece. Eram empregos com cara de favores, coisa de quem atravessa a vida no mesmo lugar da cidade: auxiliar do caixa na ferragem da José do Patrocínio, o cargo temporário de vendedor na loja de pássaros e de ração na Venâncio, os bicos como garçom nos bares daquelas quadras. Não seguia em nenhum posto, tampouco desagradava: cumpria o mínimo que se pede aos que trabalham como ele, sem a vontade nervosa dos que querem ascender, sem o desespero de correr por cada moeda. Trabalhava mais do que nada para ocupar o tempo, para estabelecer um meio de caminho entre as horas que passava dentro de casa e as horas a rodar, sempre ansioso, pelo começo do sul da cidade.
Não lembro se aquele foi um carnaval barulhento em particular — não participei das festas, não efetivamente. Eu precisava prestar um concurso em abril, menos de dois meses depois, e dediquei-me, aquele fevereiro todo, a estudar os fascículos que um primo que morava no Centro me trazia toda semana. Acordava cedo, antes de a minha mãe sair, levava as folhas para a mesa que deixava no pátio, sob os abacateiros altos que pululavam então no bairro e na nossa casa, e lia até sentir muita fome. Então entrava, todos os dias a mesma coisa, ligava o rádio, almoçava o que encontrava na geladeira, dormia uma hora ou pouco mais e então retornava à lida de cadernos com leis e disposições locais, regionais, estaduais. Lia como se se tratasse de um longo e único texto em língua estrangeira, um discurso a decorar, compartimentar na cabeça, sem necessariamente apreender. Ao final, creio que funcionou.
José passou pela frente da nossa casa, me cumprimentou com a mão direita aberta, sem palavras, e seguiu na direção da João Alfredo. Dobrou à esquerda, mas antes, e eu o observava desde o muro baixo da nossa casa, havia parado na esquina, onde hoje funciona um açougue e então havia um armazém. Ali, deve ter se demorado meia hora, cinquenta minutos. Bebia cerveja com os vizinhos que se sentavam à esquina, circundando o armazém, e que também participavam das festas; eram uns velhos, gente mais bem diurna, que pode ser que seguissem para os começos da noite, mas até sentir sono e cansaço e alguma culpa de estar na rua àquela hora, mesmo que fosse fevereiro e carnaval. Aquela era a hora da cerveja séria, ritualística, protocolar daqueles homens; para José, que os acompanhava apenas de maneira fortuita, era algo como um café de tarde com pão de milho, um gole de passagem do que pretende sair para longa viagem e atraca no início do caminho para cumprimentar alguém.
Depois é certo que dobrou a esquina, à esquerda, e então eu o perdi de vista. Havia feito o mesmo nos dias anteriores, não deixaria de seguir adiante justo na terça-feira de carnaval. Como era feriado, me permiti uma tarde de maior lentidão; o bairro todo estava sonolento, os barulhos do dia haviam sido poucos e os da noite ainda não haviam começado. Tomei mate no pátio, em pé, caminhando ao redor das árvores, tratando de fazer pequenos reparos. Havia algo a ajustar na cerca, galhos que queria podar, a água para as plantas menores, comida para os cachorros. Lembro ter recolhido as frutas muito maduras, caídas ao chão e de jogá-las longe, na direção de uns baldios que ainda ocupavam boa parte da zona. Quando voltava para dentro de casa, percebi que não queria estar encerrado naquela noite de vento, noite entre fresca e morna, propícia aos espaços abertos. Continuei com o mate quando já não havia a luz, e com o rádio, que trouxe para perto, me contando as notícias, também elas lentas, como a destempo, caducas, da cidade festeira.
Os acontecimentos das horas seguintes eu só vim a conhecer um tempo depois. José seguiu em frente na João Alfredo depois de uns goles com os velhos do armazém, mas não caminharia muito mais sem ser interrompido de novo. Na altura da República, onde havia um bar movimentado, famoso na época, dirigido por um português do Porto, encontrou rostos conhecidos. Não era gente do bairro; creio que se tratava de uns jovens universitários, com algum dinheiro, que pisava pouco nas ruas do bairro. Com eles deve ter se demorado mais — não era preciso haver maior intimidade, estava permitido, e isso para qualquer um, pular umas quantas etapas na terça-feira gorda; os conhecidos se tornavam amigos em questão de duas frases, os amigos de antes se tornavam familiares, ou ainda amantes, quatro copos depois. E José era, isso sim, presença recorrente no bar do português. Deve ter se valido disso com os turistas: imagino-o entrando na copa sem bater, escolhendo a garrafa mais gelada, pinçando com dois dedos um novo copo de vidro para uma mulher que chegava.
A esquina da João Alfredo com a República, no entanto, não era endereço de festas tardias, ao menos não no carnaval daqueles anos. Havia excessivos prédios e casas ao redor, e menos bares e cantinas que comércios. Ali não se passava muito da meia-noite. José deixou o lugar com os novos-velhos amigos e se puseram, os seis, ou sete, a andar para dentro do bairro. Não sabemos que caminho fizeram: poderiam simplesmente ter seguido em frente, sempre reto pela João Alfredo, àquela hora certamente barulhenta e iluminada, ou caminhado pela República na direção do parque, para então dobrar na José do Patrocínio ou na Lima e Silva, à direita; qualquer que fosse o trajeto escolhido, encontrariam novos focos de música e baile quase que a cada esquina. Não faltavam, naquela terça-feira já velha, coleções de lanternas para a noite do caminhante. Mas há um par de indícios, notas aparentemente soltas na crônica do dia seguinte, que nos permite especular um tanto mais sobre as rotas.
O Correio da quarta-feira à tarde, mais preocupado em noticiar os eventos de Madrid e os do Centro do Rio de Janeiro, dedicou ao menos parte das primeiras páginas às sobras do feriado pela cidade; contou sobre o desempenho de alguns blocos e das escolas que saíram pela última noite a desfilar, anotou a presença de vereadores e artistas ilustres no palco oficial, esteve atento ao rígido cumprimento dos decretos e horários (fileiras de arames a regulamentar o instinto) e, em pequenos retângulos, também se ocupou de desmandos, flagrantes, boletins de ocorrência, primeiros socorros. Entre o que pode interessar, escreveu o anônimo redator na página de número oito: “também cabe assinalar, não sem tristeza, que entre os sucedidos da noite última consta o registro de uma ligeira batalha campal à rua Sofia Veloso, nas imediações de conhecido comércio dedicado à venda de bebidas alcoólicas, no começo da madrugada desta quarta de cinzas — ocasião felizmente apaziguada sem demora e sem mais ruído pelas forças da ordem do município”.
Naquele miolo da década, a Sofia Veloso era das ruas do bairro que ainda preservava mais traços de arrabalde. A abundância dos pátios, os espaços baldios, a curva íngreme e mal iluminada que, de súbito, leva a passagem à República e os bares de balcão escuro e interior em penumbra entregavam à via uma fama contraditória: ruidosa e buscada por muitos nos dias de festa, perigosa e lúgubre nas noites cotidianas. Os pátios e jardins, ao revés do que já ocorria em travessas contíguas, na Sofia Veloso não se acomodavam à ordem de proprietários e jardineiros; ali, a vegetação, as árvores e flores, algumas de espesso perfume noturno, cresciam movidas pelo próprio desejo, um anseio impetuoso e de aparência antiga. O carnaval inevitavelmente passava por ali, e por ali creio que passaram José e seu séquito na noite de terça-feira; no entanto, suponho que naquele trecho não deve ter havido, ainda, nada de outro mundo — imagino apenas alguma desordem junto à venda de bebidas, distúrbio breve gerado pelo acúmulo de foliões cansados que desembarcavam de outra parte e de homens e mulheres sedentos, que recém começavam o périplo da noite.
Da Sofia Veloso, se é que lá de fato estiveram, já que não há rastros visíveis destes caminhantes, tão só hipóteses mais ou menos firmes, prejudicadas por uma cidade que muda e pelo tempo que passa, daquela curva erma do bairro, para onde foram? Sabemos — eu sei — que José esteve no começo da Azenha naquela madrugada, não muito depois de passar pela Sofia Veloso. Esteve na Lobo da Costa ou na Sebastião Leão, entrou em um apartamento da rua Lima Silva entre as vias referidas, de lá saiu em busca de mais bebida e mais noite, embrenhou-se na Praça Garibaldi, despediu-se de companheiros e encontrou outros. E já estava com o diabo no corpo quando pisou o bar do Polaco, que ficava por aquelas bandas, em esquina para mim mais ou menos incerta, pois ali, por sorte, nunca estive, e que há anos sei por bons informantes que deixou de existir: no lugar, um filho, ou um neto, do primeiro proprietário colocou uma oficina de reparação de bicicletas.
Foi no balcão do Polaco que apareceram os castelhanos, creio que ali eles e José se viram pela primeira vez na noite. Estavam uniformizados: vestiam camisetas brancas de gola polo e punhos vermelhos, com um globo bordado, também rubro, na parte esquerda da roupa. Eram camisetas do Club Atlético Huracán, agremiação que no dia seguinte, em plena quarta de cinzas, jogaria um amistoso contra o Grêmio no Olímpico. Mesmo que alguém tenha fabulado com isso à época, estava claro que os argentinos do bar não eram jogadores do clube — eram, creio, ou ao menos assim se investigou, parte do staff, gente que acompanhava os atletas e que havia se metido, em cheio, na noite de carnaval. Um que outro, na verdade, mas isso apenas suponho, sequer pertencia ao quadro de funcionários da instituição; eram torcedores comuns que viajavam às custas do clube para acompanhar o jogo e todo o périplo de antes e depois, carnaval incluído, e bar do Polaco também, pelo que se percebe ao recordar os já frágeis acontecimentos de setenta e tantos.
José estava já alto, depois de três bares e percorrida a primeira parte da madrugada. É impossível dizer quem buscou o contato, não é assim que se dão as coisas nas noites ébrias, mas eu diria que foi José, ele deve ter reparado rapidamente no sotaque dos visitantes e falado algo sobre o tempo em que viveu em Libres. Ali, é certo, viveu e trabalhou, por um semestre só que tenha sido, como motorista de ônibus, vários anos antes: emprego que algum dos parentes de Uruguaiana deve ter arrumado para ele depois de alguma lamúria dos irmãos ou do tio. Sobre Libres, José só fazia referências em situações como essa, a daquela terça-feira; sóbrio, pelas manhãs, em caminhada diurna, em conversas nas cadeiras ensolaradas de um pátio, nunca, e isso se sabia. O certo é que voltou da fronteira em silêncio e que, até onde conhecíamos, não tornou a passar a ponte de Uruguaiana.
Os castelhanos falavam do Huracán e de Parque de los Patricios, o bairro do sul de Buenos Aires onde residia grande parte da torcida do clube, José falava de Libres, e talvez da Azenha, dos bairros baixos, das ilhas, de alguma outra atração daquela noite, quando um deles o convidou para estender a conversa mais ao Centro. Um dos argentinos também mostrava imagens, fotos impressas e amassadas, de bares de tango, mas isso não importa. Pagaram a conta ao Polaco, que, dizem, fazia questão de atender presencialmente no caixa a madrugada inteira, e chamaram táxis que os deixariam na Borges de Medeiros, no pé do viaduto que ainda hoje se ergue monstruoso ali. O que segue consta nos autos, no volume para mim demasiado longo e pouco objetivo que tive de estudar e entender não por José, embora eu pudesse cogitar a empreitada por afeto, mas porque me tocaram questões profissionais envolvendo o caso.
Desceram dos carros ao pé do viaduto, na altura da antiga rua do Arvoredo. Não sei por que o táxi, os táxis, não contornaram o Centro para deixá-los já na Duque de Caxias. Desconheço as razões. À época, alguns dos comércios da parte baixa da passagem ficavam abertos a noite toda, ainda mais em feriados de carnaval. Eram como tocas de animais sempre ativos, sempre despertos. Ali, imagina-se, tomaram uma cerveja e os argentinos terminaram de convencer José e outros dois conhecidos (não vale a pena deslizar aqui o nome de gente de bem que, por uma noite, extraviou-se nas rotas do carnaval) a subir com eles ao hotel Everest, onde, prometiam, haveria whisky, mulheres, quartos abertos, e tudo isso constava nos valores do evento do dia seguinte, não era preciso pagar por nada. Beberam nos primeiros degraus da escadaria, conversaram minutos mais, trataram de subir lentamente. Dizem que ali já houve um princípio de discussão com um homem que mantinha um macaquinho no ombro, coisa estranha, sem dúvida, mas detalhe que se perde na poeira da estrada, nos resíduos da vida, que sequer se menciona numa recapitulação.
Conheço bem a região: posso me permitir algumas imagens, um par de suposições sobre os instantes seguintes. Adivinho, por exemplo, que por algum motivo que desconhecemos o grupo não subiu pelas escadarias que vão dar de maneira direta no hotel Everest, mas sim pela escadaria paralela, a do teatro a que se ingressa pelos degraus. E penso, também, que com a noite ainda escura, o comércio e os escritórios fechados há vários dias, o Centro da cidade dormindo um sono longo, ao olhar desde a parte da alta da Duque na direção do Centro, do rio, com alguma bruma da madrugada, um filete de luz amarela que seja, os prédios altos da Borges, da Riachuelo, da Andrade Neves, da Rua da Praia devem ter formado aos olhos estrangeiros como o contorno de um barco abandonado, isso se nunca antes tivessem estado por ali e contemplado o lugar desde aquele ponto da via.
Findas as elucubrações, conto que o porteiro do Everest naquela madrugada anotou no livro de entradas e saídas que o grupo, barulhento, ébrio e potencialmente perigoso, entrou no prédio às três e cinquenta da manhã. Subiram, todos eles, pelo elevador de serviço, a caminho dos quartos do quinto andar. Todo aquele corredor devia estar reservado aos estrangeiros; aqui, tem início uma densa zona de sombra que torna invisível os passos de José, dos seus compatriotas, dos estranhos que o convidaram para o fim de festa. Interceptados em Libres, dois dias depois, um deles, de nome Agustín, ajudante do preparador de goleiros do clube Huracán, confessou à polícia fronteiriça que o escândalo e a pancadaria tiveram lugar, de início, no quarto de número 525, para logo se estenderem, os golpes e os copos quebrando e os gritos, para todo o corredor do quinto andar. Houve, como quase sempre, um desentendimento por uma carícia fora do lugar, por uma soma em dinheiro, por uma frase mal-recebida, e logo os golpes descarrilham para outra coisa.
Horas depois, antes do fim da tarde da quarta de cinzas e na Azenha, o Grêmio entrou em campo contra o adversário argentino. Venceu por cinco gols a dois. Neca, duas vezes, Loivo, outras duas, e Iúra marcaram para o Grêmio; Houseman e Brindisi descontaram para o Huracán. José foi visto pela última vez, com ferimentos que não pareciam, para os que viram de perto, cortes mortais, na manhãzinha da quarta-feira, manco, deixando o hotel sozinho e descendo na direção da Marechal Floriano. Ele nunca reapareceu e as páginas do inquérito não chegaram a conclusões verossímeis sobre o seu paradeiro. A família recebeu, anos depois, e por duas vezes, cartas em que alguém assinava por José e pedia informações e dinheiro, ambas enviadas desde pequenas localidades do interior do estado, penso que da região de Caçapava do Sul. Quem as leu afirma, no entanto, não ser aquela a sua caligrafia. Os jornais calaram a história por três dias, depois subiram o caso às manchetes para, sem ter para onde correr, optar de novo pelo silêncio, desta vez para sempre.