“Sessão noturna”, Omar Prego Gadea

Iuri Müller
10 min readOct 15, 2020

Capaz que entonces las cosas cambiaban y que la hacían salir por otro lado aunque no supiera por dónde ni por qué.
Julio Cortázar

Na noite anterior haviam fuzilado dois oficiais e só se viam caminhões do exército, patrulheiros, os já clássicos Ford Falcon verdes ou pretos com homens de olhar turvo ao volante. As pessoas passavam com ar furtivo, margeando as paredes. De tempo em tempo se podia ouvir uma freada brusca e as ordens gritadas de um oficial. Havia uma breve luta que invariavelmente terminava em golpes, empurrões e pontapés, seguidos do seco estalo das portas da viatura. Às vezes alguém gritava um nome antes de desaparecer, depois os pneus cantavam no asfalto e as testemunhas se dispersavam em silêncio, apressando o passo, sem olhar para trás.

A projeção do filme estava prevista para às quatro para que todos tivessem tempo de voltar cedo a suas casas ou hotéis, mas às cinco Claude não havia aparecido ainda e todos estivemos de acordo de que não poderíamos começar sem ele. Sem contar que Marc declarou-se incapaz de ligar o projetor depois de manejar interruptores e tentar diversas tomadas. Aparentemente o aparelho estava em boas condições, mas algo se negava tecnicamente a funcionar, de modo que desistimos de tentar e aproveitamos para colocar um tanto em dia a situação. Claude chegou às cinco e meia, quando já começava a escurecer, e depois de uma breve análise do projetor constatou que alguma peça havia estragado, um fusível talvez. Juan disse que aquilo era uma fraude e que se o tivessem feito atravessar a cidade para isso seria melhor devolver o dinheiro e tratar de fazer outra coisa.

Marc e Claude decidiram que melhor seria pedir para que fosse enviado outro projeto, visto que ninguém queria perder o filme. Por outro lado, o vinho estava bastante bom e a comida tinha boa cara. Já era noite, de qualquer forma, e Julio e Juan haviam começado a recordar as maratonas dos seus tempos: as rituais seis ou sete horas, nos fins de semana, em um cinema de bairro de Montevideo ou Buenos Aires; primeiro a matiné, os filmes cômicos; dois filmes no meio em que, com um pouco de sorte, se poderia ver um de Libertad Lamarque, Besos brujos, ou Cita en la frontera; era até possível que o galã fosse Floren Delbene. Ninguém pôde lembrar como se chamava o filme em que Libertad Lamarque se encarnava na luta com uma rival no alto de uma escadaria em caracol, em que, depois de um ou dois minutos de forcejar e puxar o cabelo, a outra, a malvada, caía estrondosamente e o seu corpo ficava definitivamente estendido lá embaixo, contra um fundo de azulejos em preto e branco. Então, depois de comprovar a morte da inimiga, Libertad se virava para a câmera com uma expressão trágica em seus olhos perdidos e, sem mais, começava a cantar um tango. Antes do último filme havia um longo intervalo, durante o qual todos aproveitavam para comprar chocolates ou doces e mesmo para ir ao banheiro e voltar bem para o prato principal, em geral um filme de pistoleiros com James Cagney ou, melhor ainda, com Humphrey Bogart.

Juan se lembrava de uma versão uruguaia de Os três mosqueteiros, cujas tomadas externas foram filmadas no Parque Rodó, não muito longe da biblioteca municipal onde ele trabalhava. Em certo momento havia um duelo entre os mosqueteiros e uns capangas do cardeal Richelieu e logo, para assombro e gozo da plateia, via-se passar um bonde (segundo Juan, o 35, a caminho de Punta Carretas). Julio disse que deveria ser um involuntário efeito surrealista, agora passariam apenas viaturas e patrulheiros como os que andavam pelas ruas. De fato, estavam como loucos e era impossível não pensar em um formigueiro que alguém havia despertado com um chute.

Eu olhava as mãos enormes e brancas de Julio que, nesse momento, se erguiam e por um instante ficaram cobertas de furiosas formigas mordendo a carne, e sem saber por que olhei para a sua mulher e tive a impressão (mas não poderia ser, seria exagerada coincidência) de que ela também via o mesmo que eu, vi seus olhos apavorados e seu gesto de rechaço. Marc e Claude agora haviam se sentado e conversavam em voz baixa. Por algum motivo pareciam um pouco culpados pela demora e era divertido, por outro lado, observar aquele ar de conspiradores. Afinal chegou o novo projetor, e os dois entregadores pareciam surpresos de ver tanta gente reunida e àquela hora. Um deles, principalmente, o loiro baixinho de testa estreita, não parava de olhar na nossa direção, intrigado, e me pareceu que ele havia reconhecido Julio. Vi, quando saíam, que ele dizia algo em voz baixa ao colega, que encolheu os ombros e se foi.

O filme era uma longa reportagem que se abria com cenas de Julio caminhando por Paris. Nas primeiras, Julio atravessava uma rua e entrava numa livraria, víamos como empurrava a porta e se perdia de vista entre as estantes. Depois a câmera se instalava no seu apartamento da rua Berger, onde podíamos vê-lo sentado à mesa de trabalho, alheio, ao que parecia, aos intrusos que o filmavam com esmero. A todos nós devia de parecer estranho que Julio estivesse aqui conosco, tão perto e tão longe desse outro Julio a salvo na celulose do filme, protegido por milhares de quilômetros, por esse canal que agora percorria como que perdido em um sonho. Outra vez me perguntei se devia ter aceitado o convite e vindo a este colóquio. Ninguém estava a salvo e era evidente que os jornais faziam todo o possível para nada mencionar, a não ser nos editoriais. Um bem-mandado escreveu sobre os intelectuais que preferiam viver longe da sua pátria, aqueles que conspiravam no estrangeiro e participavam na campanha de calúnias lançadas contra o país. Mesmo que pareça absurdo, decidi que enquanto durasse a projeção Julio estaria fora do alcance dessas patrulhas que ferviam nas ruas com uma cólera impotente. Havia, agora, uma ampla visão do Sena, a câmera se concentrava numa eclusa que se abria para deixar-se penetrar por uma barcaça rubro-negra. Depois aparecia o mundo fechado das galerias Vivienne, o aquário do Jardin des Plantes e os axolotes com suas graciosas caras astecas; subitamente a câmera havia se transformado nesse olho misterioso, decidido a adentrar um mundo remoto que nos arrastava e nos perdia.

Quando terminou o filme e alguém acendeu as luzes, tive a impressão de retornar de outro tempo: a tela nua era uma janela a ameaçar. Houve um repentino silêncio que se quebrou quando Julio fez uma piada e todos passamos a parabenizar Claude e Marc, que sorriam contentes enquanto recolhiam os aparelhos e enrolavam metros e metros de fio. As mulheres apareceram com mais pratos e garrafas; de repente nos sentíamos felizes e seguros no ambiente repleto de fumaça onde pareciam flutuar as últimas imagens da projeção. Era (penso agora, à distância) como se nos sentíssemos invulneráveis enquanto não nos separávamos, enquanto continuávamos comendo, bebendo e fumando, juntos e dispostos a esgotar qualquer assunto. Mesmo que às vezes, em uma pausa brusca, lembrássemos que em algum momento teríamos que descer e sair para a rua já deserta, e nos dispersarmos.

Juan sugeriu que deveríamos terminar a noite em um restaurante italiano, mas ninguém sabia se encontraríamos algum pelo bairro e que ainda estivesse aberto àquela hora. Maria Angélica acreditava ter visto um por perto, ou nem tão por perto, mas em uma rua paralela à nossa, sem entrada direta. Era preciso contornar uma praça e depois dobrar à esquerda, em um trecho escuro. Enquanto vestíamos os casacos decidimos que o melhor seria que Juan fosse no carro de Marc com Dolly e Maria Angélica. Os demais iríamos a pé. Houve essa inevitável confusão de cachecóis e luvas sempre dispostos a trocar de proprietário e eu, sem saber o motivo, pensei no funcionário da Migração folheando uma e outra vez as páginas do passaporte de Julio no dia da sua chegada, com um sorriso satisfeito, ao mesmo tempo que as mãos (outra vez as mãos) se moviam como aranhas numa parede. Só olhou para Julio depois de carimbar o documento com parcimônia, mas quando saímos me virei e vi quando ele dirigia um gesto com a cabeça para o companheiro, certamente um policial vestido à paisana.

A rua soava mais ameaçadora agora que estava inteiramente vazia, com suas árvores secas alinhadas uma ao lado da outra. Juan subiu ao automóvel com Dolly e Maria Angélica e nós começamos a caminhar, em silêncio. Vimos as luzes traseiras do carro se perderem ao dobrar a esquina e apertamos o passo, como se estivéssemos a ponto de correr. Quase todas as casas e edifícios estavam às escuras, com as persianas baixas, como numa cidade sitiada ou abandonada. O restaurante não ficava onde eu imaginava lembrar, de modo que demos duas voltas na praça sem distinguir nada que se parecesse a um restaurante, italiano ou não. Havia, no entanto, um bar aberto, e Claude e eu pensamos que seria melhor que Julio e Carol entrassem e tomassem um café enquanto nos esperavam; na verdade, fazia um frio tremendo, e imaginei que Carol se estremecia. Julio aceitou a indicação com má vontade e os deixamos acomodados em uma mesa.

Eu era do bairro, mas quase nunca me dirigia para esses lados porque a parada do meu ônibus ficava em outra direção, assim que me sentia tão perdido e estrangeiro como Claude. Ao longe se abria uma rua iluminada e pensamos que deveria ser por ali, sobretudo porque conseguíamos enxergar um letreiro que piscava em intervalos regulares. A rua ficava envolta por uma espuma vermelha por uns segundos, para logo se ensombrecer bruscamente. Não havia nem rastros do carro de Marc; os demais já deveriam estar no restaurante e poderiam estranhar o nosso atraso. Chegamos à outra esquina, mas ficava claro que não era por ali: havia uma pequena praça para onde convergiam três ruas estreitas, tínhamos tomado a direção errada. Voltamos sobre nossos passos, cansados, e lembro ter pensado vagamente que quando tudo tivesse terminado Julio seria capaz de escrever um conto com tudo isso, que no fundo não era nada. Claude decidiu buscar Julio e Carol no café para tranquilizá-los, enquanto eu explorava o outro lado da praça, a zona que havíamos deixado a nossas costas. Já era quase meia-noite e o restaurante estaria a ponto de fechar, eu poderia facilmente imaginar o proprietário e os garçons olhando fixamente para a mesa de Juan (que sequer se daria conta), enquanto Dolly e Maria Angélica se perguntavam, cada vez mais alarmadas, onde diabos tínhamos nos metido.

Faltava só um lugar para percorrer, uma rua estreita, margeada de plátanos, e claro que ali estaria o restaurante, não poderia ser outra coisa; desde onde eu estava sentia o cheiro de pizza e fogo à lenha, um casal saía nesse preciso instante e alguém os despedia na porta; pude ouvir algumas palavras em italiano: deveria ser o proprietário em pessoa conversando com os dois bons clientes. O homem me olhou com certa surpresa e permaneceu na entrada, como que me fechando o caminho. “Já fechamos, senhor”, disse, com um quase sorriso. Enquanto olhava o salão por cima do ombro dele comecei a explicar que certamente ali estariam alguns amigos me esperando, um homem já mais velho e duas senhoras, mas ele se limitou a mexer a cabeça espalhando um resto de brilhantina barata, imóvel, quase ameaçante, me repetindo que o restaurante estava fechado e que não restavam clientes.

“Então já foram embora”, eu disse, e tratei de descrever Juan da melhor forma possível: era impossível que não o tivessem notado, com seus dois metros de altura e aquela touquinha de pele que alguém lhe havia trazido de Paris, mas o homem entregou um gesto cansado e se virou para o fundo sem deixar de bloquear a entrada. Gritou algo, em italiano, e de imediato apareceu uma espécie de colosso em camiseta, com um avental que parecia manchado de sangue (devia ser molho de tomate); os dois começaram a falar em italiano até que o gordo baixinho me encarou e disse que naquela noite não haviam visto ninguém que se parecesse à pessoa que eu descrevia, ninguém alto com aquela espécie de touca.

Atrás do colosso apareceu outro indivíduo, também tapado por um avental sujo, e os vi se alinharem numa atitude francamente hostil. Era certo que, se eu desse um passo adiante, eles teriam se lançado contra mim. O patrão (porque por certo era o patrão) dava a impressão de estar nervoso ou assustado e tratou de terminar com aquilo o mais rápido possível. Em dado momento os vi avançar, agressivos, e então tive que retroceder. Fiquei perplexo por minutos, sem saber o que fazer. O italiano havia me dirigido um último olhar e depois baixou a cortina metálica com estrondo. Quase em seguida as luzes do restaurante se apagaram e a rua voltou à escuridão. Havia só uma lâmpada acesa em toda a quadra e agora que o letreiro luminoso havia deixado de iluminar a sensação era de se estar em um beco sem saída. Creio que foi ali, naquele momento, que experimentei a primeira pontada do medo e estive a ponto de sair correndo, mas logo me disse que era isso o que eles esperavam de mim.

Esperando ser atingido ou atacado a qualquer momento, tratei de me afastar com a maior naturalidade possível em busca do café onde estariam me esperando, com espanto justificado, Julio e Carol. Lembro também ter me esforçado para buscar argumentos que me tranquilizassem, ao menos em parte, dizendo-me que aquilo tudo era um erro, mais um naquela noite absurda, e que não muito longe dali por certo estaria o restaurante italiano, e eu só precisaria procurar bem e com calma.

O pior era o silêncio, essa sensação já vivida de cidade morta, abandonada, como se houvesse um acordo tácito ou um pacto entre eles e os demais, segundo o qual a partir de certo horário as ruas pertenciam a eles por inteiro, à disposição, e nelas poderiam circular sem restrições de nenhum tipo; o único sinal maçônico entre eles consistiria precisamente nisso, no fato de se andar pelas ruas, de atravessar a noite sem luzes a toda velocidade, de cercar uma esquina qualquer, fumando, eles os donos do tempo. O café estava fechado. Atrás dos vidros eram visíveis as cadeiras empilhadas sobre as mesas com esse ar de natureza morta que adotam os cafés à espera do dia. Fiquei um longo tempo sem saber o que fazer e logo comecei a caminhar com o medo a pisar meus calcanhares e pensei que o melhor seria voltar para casa, voltar para casa e esperar que eles se cansassem do jogo e finalmente decidissem buscar também a mim.

***

Omar Prego Gadea nasceu em 1927 no departamento de Florida, interior do Uruguai. Publicou, entre outros, os volumes de contos Los dientes del viento (1969) e Solo para exiliados (1987), livro em que se encontra “Función nocturna” (“Sessão noturna”), aqui traduzido. Exilou-se em 1974 e viveu na França por cerca de dez anos. Exerceu também o jornalismo e a crítica literária, com trabalhos sobre Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar e Delmira Agustini. Morreu em Montevideo no ano de 2014.

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