Rui, 1934

Iuri Müller
2 min readMar 26, 2020

Nasceu, no remoto 1934, em um dos bairros ferroviários de Santa Maria, num dos cantos do Itararé, onde até hoje chamam de Montanha Russa. Há uns anos fomos lá, de carro, ele dirigia: me mostrou a igrejinha, a escola da localidade, o terreno em que seguiam morando uns parentes já tão distantes que custava definir a procedência. Dali até o centro são quarenta minutos de caminhada, mas o lugar permanece quase rural, próximo à barragem do Vacacaí, rio em que se banhava quando moço, e da própria linha férrea, a aresta central, a linha de força de todos os bairros do norte e do nordeste da cidade. Não mais, agora: a estação está abandonada, a “encruzilhada de trens, de antigas baldeações para as cidades da serra, da campanha, com seu cheiro de carvão e de fumaça, comida quente, ferro e pedregulho”, como narrou Sergio Faraco, está praticamente vazia, do Itararé só saem os vagões de carga que lamentam, insistentes, nas noites, e os ouvimos quando estamos à espreita ou insones. Ele ouvia bem todo esse barulho, o antigo e o mais recente, da parte alta do centro, depois que a cidade desce em direção ao parque e volta a subir pela Venâncio Aires, rua em que viveu por mais de cinquenta anos. Trabalhou toda a vida na mesma empresa, a loja de calçados que o fez conhecer a cidade a pé, primeiro visitando os clientes com as ofertas de sapatos e sandálias, depois em invisíveis depósitos e almoxarifados e então, por muito tempo, atrás do balcão, conversando com os que chegavam, vendo a rua por portas e vitrines. Sabia, mesmo décadas depois, enumerar os clientes que eram assíduos e generosos e os que empacavam e tardavam a pagar, sabia citar os números dos calçados que serviam a um e a outro, a nomes que se perderam, ao menos para mim, na poeira da estrada, nos desvios da narração. Assistia, como que indiferente, aos gatos que eu e minha vó fazíamos crescer pela casa deles e demorava uns anos para aceitar que um deles subisse no colo; torcia pelo Riograndense, pelo Grêmio e pelo Vasco da Gama no Brasil, graças ao rádio que transmitia jornadas que, desde o Maracanã, alcançavam a Montanha Russa. Fumou por meia vida, talvez um pouco mais. Não gostava dos milicos. Bebia, todas as noites, um pouco do vinho que algum neto, filho ou vizinho trazia da fronteira, e não se sentia constrangido de guardar os melhores para quando fosse a hora, mesmo que a hora tardasse, custasse a chegar. Achava muito caros os que estavam à venda nos mercados da cidade, só os comprava em tempos de escassez. Era cabeludo, gostava de escutar tangos, de ler revistas. Leu poucos livros, mas me disse que algumas frases se repetiam em todos, que eu perceberia com o tempo, como a que diz que “as janelas se abriram de par em par”, o que é certo. Morreu ontem, na cidade em que nasceu e que já é outra, e não cabem, os dois, em uma página.

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