Páginas de um rio (VII) — José Pedro Díaz

Iuri Müller
4 min readJun 18, 2021

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Autor de textos sobre outros textos (ensaios sobre romances de Juan Carlos Onetti, contos de Felisberto Hernández e poemas de Gustavo Afolfo Bécquer), José Pedro Díaz foi também poeta e narrador. Díaz nasceu em 1921, em Montevidéu, cidade onde atuou ainda como professor e editor e onde levou adiante a sua obra literária. Morreu no Uruguai, aos oitenta e cinco anos, em 2006. Los fuegos de San Telmo (1964) — cujos primeiros três capítulos aparecem, abaixo, transpostos pela primeira vez à língua portuguesa — é uma das suas principais novelas.

***

1. Sua ausência me rodeia

Já faz muitos meses que isso dura. Quando ando por alguns lugares sinto com tanta intensidade o eco dos seus passos que preciso me voltar para a lembrança, para aquele lugar onde ainda permanece a esplanada pavimentada do porto, e onde ficou abandonado um reboque com grãos de trigo que as pombas mordiscam. Também há um longo e grosso mastro jogado perto dos trilhos. A água bate ali perto. Toda aquela região da lembrança está animada por um ruído de mar que toca as madeiras de barcos e do cais.

Agora que ando como que perdido pela cidade, ele me acompanha de um modo semelhante ao de então. E tampouco agora sei para onde vamos. Ele me ensinou muitas coisas, mas são justamente essas em cujo fundo há algo mais, que não se consegue ver…

Ele me levava a passear e conversávamos, mas não me dava conselhos. Queria passear assim e com ele, agora, e falar de qualquer coisa. Porque com ele me sentia seguro, apesar de que também soubesse que o incerto nos rodeava. Eu sempre pensava que, enquanto estivesse com ele, o mundo poderia chegar a ser familiar mesmo sem deixar de ser escuro. E agora que já começa a ser familiar, penso que é ele quem me entrega, ainda, um fino, escuro e penetrante tecido. Porque ele sabia apenas estar, quase como agora, quem sabe esperando.

Talvez também tenha sido ele quem me ensinou a esperar, e a esperar precisamente isto, este seu chamado de agora para irmos juntos, sabe-se lá onde. Por isso me empenho em seguir aquela figura pequena e difusa que caminha com passo hesitante pela esplanada do porto.

2. Comprávamos peixes

Certamente era verão. Haviam esperado, sobre o cais, a chegada dos barcos. Era o meio da tarde e o primeiro tinha acabado de chegar. O menino já tinha visto o seu fundo, em que se amontoava o brilho prateado e ainda palpitante dos peixes. Enquanto um dos pescadores arriava as velas forçando as cordas escuras, molhadas, cordas que pingavam uma água prestigiosa, água de mar adentro, o dono do barco dialogava gritando o seu dialeto aos que estavam no cais. O velho também gritava algo para aqueles homens. O menino não soltava a sua mão. Por entre as tábuas separadas do piso do cais, via a água negra que se agitava abaixo, em que a luz do sol, filtrada pelas grossas ranhuras da madeira, retorcia entre os grossos pilares repletos de musgo as linhas curvas, brilhantes e ágeis, símbolos naturais daquele mundo de peixes que habitava as profundidades. Via o barco que se movia recolhendo a palpitação do mar. Ouvia o estalo quase regular da água contra o casco. Sentia oscilar lentamente, perto dele, o mastro seguro, audaz, rítmico. Imaginava que alguma vez poderia subir num barco como aquele: sentir sob seus pés tão leves o corpo pesado e móvel do barco e, abaixo, o mar. Não se animava a pedir, mas não conseguia se afastar da borda do cais. A popa e a rede formavam um vulto escuro e molhado, onde o sol fazia brilhar às vezes algum reflexo. Como estenderia uma rede? Os homens recolhiam a pesca em latas. Enrolavam cordas. O menino se aproximava da borda do cais, mas não soltava a mão do velho.

- Vamos, lhe disse este.

Na sua outra mão se penduravam, presas em um talo verde, duas corvinas. Ele já havia feito a sua compra. Era pequeno. Tinha que recolher um pouco o braço para que o rabo das corvinas não se arrastasse pelo chão.

3. Minha busca

Tenho que buscar: mas onde?

Sei que as oliveiras, que crescem junto ao caminho e quase chegam até o mar, são maiores que as que jamais pude ver, “quase como plátanos”; sei que as sombras dos barcos podem ser vistas no fundo do mar: “ali, se uma moeda cai, é possível desde o cais vê-la chegar até o fundo”. E também sei outras coisas: conheço o tato enrugado das suas mãos curtidas, dos seus dedos grossos e inocentes; recordo pedaços de velhas histórias de cavalaria, em que todos os cavaleiros são fiéis servidores do Imperador da Barba Florida; e lembro muito bem como o pescecane arrastou o seu barco mar afora, até onde não se podia mais ver a terra, apenas o topo da montanha. E ainda lembro a esplanada que se estende junto ao passeio, e um mastro velho, abandonado perto dos trilhos.

E sei que é isso que preciso voltar a encontrar. A sua presença de agora só quer me ajudar a ter melhor isso que já tenho. Por isso me chama.
(extraído de Los fuegos de San Telmo, Centro Editor de América Latina, 1968)

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