Praças perdidas
Em Proust, nas primeiras páginas de À sombra das raparigas em flor, o tomo dois do monumento de sete livros, o narrador conta a já distante tarde em que, nos parques dos Campos Elísios, entrou com Françoise, a empregada da família, em um banheiro ou lavabo público do lugar. Conduzido por uma ambígua funcionária do parque, o narrador percebe ali, entre a umidade e as portas e janelas todas fechadas, um cheiro que recorda outro ambiente, muito distinto: o do escritório-biblioteca do seu tio Adolphe, na casa familiar de Combray, onde se acumulam as volumosas lembranças de infância. A ponte entre um lavabo de um parque público de Paris e o escritório fechado de Combray é uma conexão sinuosa: se bem a umidade ou o cheiro dos ambientes fechados possa produzir a associação, os nexos não deixam de ser improváveis. A relação narrada nessa cena é uma das tantas que ocorre a partir do que Proust chamou de memória involuntária, a operação capaz de juntar a percepção do presente a aparentemente esquecidos instantes do passado; na memória involuntária, é possível a comunhão entre elementos díspares, a máquina da recordação se move entre territórios de lembrança e de esquecimento, iluminando zonas que pareciam fadadas à ilegibilidade perpétua. A madeleine que acompanha o chá no tempo presente da narração e que despertará a lembrança do quarto da tia Léonie, em Combray — espaço que se desdobra em uma miríade de lembranças possíveis — é, claro, o evento mais famoso desse gesto, desse acionar intempestivo. Enquanto lia, há poucos dias, a passagem dos Campos Elísios, veio-me à lembrança uma visão que não pôde se estabelecer por inteiro. Lembrei o parque — ou grande praça — que percorri, com amigos, na primeira visita que fiz a Buenos Aires, dez anos atrás. É certo que nunca voltei àquele lugar, mesmo tendo feito repetidas viagens e vivido por meses na cidade. Sequer posso situar a praça, ou parque, no mapa da cidade, pois a localização me escapa, o que também é estranho: vejo-a, quando da lembrança escapante, perto do centro, na região de alguns dos prédios históricos, mas não a caminho de San Telmo, imagino-a para outro lado — tampouco seria na direção norte, que conheci bem e percorri diversas vezes a pé. Também posso excluir a chance do oeste, via avenida Corrientes, que tenho rastreada competentemente na memória; há algo de misterioso na lembrança que não se preenche de todo, que não se deixa mapear, que não encontra a referência de um bairro ou de uma placa de rua. Lembro, na visão entrecortada que a praça com esforço me oferece, zonas de grama bem cortada e outras que sugerem certo descuido, lembro a atmosfera de vazio, de quase ausência de passantes (como a de alguns espaços construídos nos sonhos, que logo se desfiguram), para além de algumas crianças que brincavam junto a bandeiras que, provavelmente, identificavam um protesto político relativo às Malvinas; agora, quando escrevo, penso enxergar a camiseta de uma das crianças, uma camiseta do River Plate, mas tampouco essa imagem se forma por completo. Em La mayor, de Juan José Saer, o protagonista e narrador do relato investiga — a partir da imagem da madeleine de Proust — as imagens de uma cidade ausente, que não enxerga enquanto trata de narrar, pois está dentro do quarto da casa materna e dirige o olhar às paredes brancas. Com esforço, quase que à força, avança na construção das imagens, e umas poucas, ao fim, se deixam ver; imagens do tempo presente, de ruas escuras e vazias, de sinaleiras alternando cores, de uns raros carros que passam, cortando a noite. E, apenas ao desfecho da narração, a cidade aparece de certo modo reconstituída como lembrança, pois do fundo de algum inaudito recipiente surge a tarde ensolarada em que o personagem caminha pelas ruas do centro de Santa Fe e percebe, atentamente, o rosto dos passageiros de um ônibus que cruza por ali. O primeiro fragmento aproxima os demais cantos escuros, funciona como um anzol ou como ímã, e surgem na recordação a mesa de um bar com seus dois ocupantes, o homem que atravessa a rua e quase roça em sua roupa, a luz invernal (condição que agora já não me parece tão clara, enquanto recordo o texto e escrevo, sem recorrer ao livro) a tocar a calçada e os edifícios da região. O conto que, de início, rechaçava a possibilidade de lembrar — e narrar — como em Proust, acaba por entregar uma imagem constituída. Falta, ainda, para mim, recordar a praça por inteiro: agora creio enxergar um desnível, uma diferença de relevo, um ligeiro barranco entre a grama e a calçada, ou entre o verde e o asfalto; mas é possível que eu apenas recorde a estrutura do parque Lezama, entre San Telmo, La Boca e Barracas, um parque distante — creio eu — da praça que imagino e não termino de formar na memória.