Páginas de um rio (VI) — Cristina Peri Rossi
Autora de uma vasta e heterogênea obra que deambula por distintos gêneros e estilos, Cristina Peri Rossi (Montevidéu, 1941) é uma das vozes mais marcantes da literatura em língua espanhola há várias décadas. Exilou-se na Espanha em 1972, às vésperas da ditadura militar uruguaia, e vive até hoje em Barcelona. Escreveu, entre muitos outros, o romance El amor es una droga dura (1999) e o volume de poemas Diáspora (1976). El libro de mis primos, premiada novela de 1969 e inédita em língua portuguesa, foi o texto escolhido para a tradução de um de seus capítulos.
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Oliverio. Os sonhos.
O sonhar o viver
A vida que é sonho
e o sonho de viver uma vida inteira
sonhar que se está vivo
e dormir desperto todo um sonho
o sonho que se estende
e uma vez, que sonhei uma vida feita
sonhei que despertava e estava vivo
vivendo uma vida nova
sonhando sonhos velhos
e a vida tinha a cor antiga das catedrais
e o sonho era um elefante que se movia
atrás de uma janela
olhando melancólico as outras plantas.
Sonhei que vivia sonhos vivos
sonhos gordos como ursos de inverno
e dormi uma vida inteira,
me acordando apenas para dormir.
A bebedeira de sonhos subia a minha cabeça com os primeiros frios. Sonhava desperto, sonhava adormecido, sonhava sentado na cadeira e enquanto comia; meus despertares eram inquietos, porque preferia seguir dormindo, e se não tinha sono ocupava meu tempo em organizar os temas dos meus sonhos, preparar o material que sonharia, separar os ditosos temas dos sonhos alheios e os suscetíveis somente de serem esquecidos. Vinham assim, mansamente, deslizando-se desde o outono, quase sem tocar a terra; eu os esperava sentado, semiadormecido, entorpecido pela luxúria de entender. Por vezes começavam a chegar pela raiz de uma folha, um pensamento ou algo parecido; é que eu estava num ônibus e, como um velho licor que se avizinha, um portal derramava seu perfume de madeira e de portal, de tronco, resina, unguento, mão de bronze, velhas famílias; ou era apenas um roçar de tecidos na escadaria do teatro (tecidos que se esfumavam na escuridão) que me fazia começar a sonhar, com o toque da música, da escuridão, o tato dos tecidos, o perfume dos leques acariciados na penumbra, os sons antigos que se desprendiam dos violoncelos e do clavicórdio como uma música de sonhos que estivesse por se dissolver, submissos, humildes, recolhidos no subconsciente.
Quando a estação dos sonhos já havia se instalado, eu exercia certo domínio sobre minhas fantasias, que a prática, o exercício, acentuavam ao longo dos dias. Já nada me detinha no sonhar, e nem bem me acomodava no jardim, em uma cadeira, na igreja, na sala de jantar, ao lado da minha avó, tratavam de sonhar as minhas têmporas, os meus cabelos, meus braços, meus membros e às vezes até a cabeça e os dedos da mão sonhavam com independência coisas diferentes. O mais triste era romper o feitiço dos sonhos para comer ou para chorar um pouco, para falar com os demais ou sair a passear. Mas logo aprendi a sonhar em todos os lugares: de mãos dadas com meu pai, caminhando sobre a grama, quando nos domingos me levava a tomar ar, a trocar o da casa por outro que cheirava a amêndoas e castanhas. Aprendi a sonhar enquanto falavam comigo, quando ria, quando parecia atento e, se resolvia as equações de segundo grau, a sonhar nas fontes, nos coretos, sob os cinamomos e os sombreados jasmins. Sonhei de tudo; nos meus sonhos os animais eram enormes, brilhantes e sensíveis, como dinossauros, e sonhei com borboletas, aves, caracóis, pedras preciosas, fiordes, a Rússia, Mozart, cadáveres, ressurreições, concertos e pequenos bosques.
A estação dos sonhos descia até mim toda manhã, deixando a sua carga, da que eu extraía uma maçã, uma flor, muitos perfumes e grupos de sílabas que me agradava decompor, buscando combinações novas. Soube assim que um som é uma geometria que podemos compor e que o significado é apenas uma referência imediata às coisas que aprendemos a nomear quando crianças, no tempo da obediência.
(fragmento de El libro de mis primos, Biblioteca de Marcha, Montevidéu, 1969.)