Páginas de um rio (V) — Juan José Saer

Iuri Müller
3 min readJun 4, 2021

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O santafesino Juan José Saer (Serodino, 1937) é o autor de alguns dos romances mais importantes para a compreensão da literatura argentina da segunda metade do século XX: Nadie nada nunca (1980) e El entenado (1983), por exemplo, ganharam traduções no Brasil, mas obras como Glosa (1986) e El limonero real (1974) ainda aguardam transposição para a língua portuguesa. Saer, que viveu por décadas na França, onde morreu em Paris no ano de 2005, também se dedicou ao conto, ao ensaio e à poesia, principalmente em seus inícios. Reunidos sob o título de El arte de narrar (graciosa e aparente contradição), seus poemas também seguem inéditos em nosso país. Quatro deles aparecem hoje aqui.

MOTIVOS

Gotas frías en hojas grises
y el viento con acero de mayo.
Con minucia, el otoño
perfora el corazón
del verano enterrado entre las hojas podridas.
En la reunión del fin y del comienzo
¿quién verá en ese ramo de otoños y veranos
la caída del agua, la tensa vibración
de la hoja, para decir después su resplandor
con qué palabra?
Clara madera en que la luz festeja
con destellos veloces la limpia destrucción.
El olor del café, denso como un abrazo,
en la casa quemada de amor,
roza al pato salvaje y a los duros limones
muertos en el fogón.

El que ve en las mañanas de mayo corromper
el otoño las uvas finales
tiembla y vacila.

MOTIVOS

Gotas frias em folhas cinzas
e o vento com o aço de maio.
Com minúcia, o outono
perfura o coração
do estio enterrado entre as folhas secas.
Na reunião do fim e do começo
quem verá nesse ramo de outonos e verões
a água que cai, a tensa vibração
da folha, para depois dizer seu esplendor
com que palavra?
Clara madeira em que a luz festeja
com fulgores velozes a limpa destruição.
O cheiro do café, denso como um abraço,
na casa queimada de amor,
roça o pato selvagem e os duros limões
mortos no fogão.

Aquele que vê nas manhãs de maio corromper
o outono as uvas finais
treme e hesita.

***

OCTUBRE EN TOSTADO

Leopardos en la luna, y esas cosas
(un hueso, ramas, una fotografía)
que no pueden nombrarse: el tiempo las ignora.
Horas breves de días breves en la corriente fugitiva.
La huella es liviana
sobre el sendero: la arena cambia
y oculta sin cesar los arabescos
fortuitos, las palabras escritas con huesos
y con ramas en la piel húmeda
estragada de ayeres, entre rosas
ardiendo sobre ceniza. Leopardos
en la luna, y cosas cuyo nombre
deslumbra o mata:
el tiempo las destruye.

OUTUBRO EM TOSTADO

Leopardos na lua, e essas coisas
(um osso, galhos, uma fotografia)
que não se podem nomear: o tempo as ignora.
Horas breves de dias breves na corrente fugitiva.
As marcas são leves
sobre o caminho: a areia altera
e oculta sem parar os arabescos
fortuitos, as palavras escritas com ossos
e com galhos na pele úmida
estragada de vésperas, entre rosas
ardendo sobre a cinza. Leopardos
na lua, e coisas cujo nome
deslumbra ou mata:
o tempo as destrói.

***

A UNA AMIGA

Llegó entonces la estación capital, el verano,
sometido a um rigor de fuego. Qué real
nuestra corta tarde: una medalla mojada — relumbrones
oscuros — bajo los árboles. Ahora puedo decir
lo innumerable de mi vida, a la luz férrea
de un día solitario. Gastamos nuestra
llama escasa, desde los bordes
hasta el núcleo, consumiéndola
minuto a minuto. No guardamos
ni música. Y me he quedado solo
tratando de luchar con la camisa estrecha
de mi voz, para decir esta palabra imprecisa
que nunca escucharás. Así sea.

PARA UMA AMIGA

Chegou então a estação capital, o verão,
submetido a um rigor de fogo. Quão real
nossa breve tarde: uma medalha molhada — clarões
escuros — sob as árvores. Agora posso dizer
o inumerável da minha vida, à luz férrea
de um dia solitário. Gastamos nossa
escassa chama, desde as margens
até o núcleo, consumindo-a
minuto a minuto. Não guardamos
sequer música. E eu fiquei sozinho
tratando de lutar com a estreita camisa
da minha voz, para dizer esta palavra imprecisa
que nunca escutarás. Assim seja.

***

ELEGÍA PICHÓN GARAY

Deberes
y un cielo, azul, que se hunde
en el ramo de tardes
que atravieso
como quien se levanta, ciego,
desde una cama de ceniza.

Bienaventurados
los que están en la realidad
y no confunden
sus fronteras.

ELEGIA PICHÓN GARAY

Deveres
e um céu, azul, que se afunda
no ramo de tardes
que atravesso
como quem se levanta, cego,
de uma cama de cinzas.

Bem-aventurados
os que estão na realidade
e não confundem
suas fronteiras.

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