Páginas de um rio (IV) — Juan Carlos Onetti
Montevideano nascido no ano de 1909, Juan Carlos Onetti escreveu não só uma das obras mais importantes da história da literatura uruguaia como de toda a narrativa moderna em língua espanhola. Autor de, entre outros textos, o romance La vida breve, de 1950, e a novela Los adioses, de 1954, Onetti recebeu o Prêmio Cervantes — o mais importante em seu idioma — em 1980. Morreu em Madrid, cidade onde viveu por quase vinte anos, em 1994. A novela curta Cuando entonces, traduzida aqui como Quando então, foi publicada em 1987 — e segue inédita no Brasil. As primeiras páginas de uma proposta de tradução seguem a seguir:
Quando então
Mais uma vez a história começou, para mim, no dia-noite de Santa Rosa. Estávamos com Lamas em uma cervejaria chamada Munich, em Lavanda. O calor aumentava no lugar, cheio de ansiosos, de fumaça e vozes. Havia um repicar contínuo e vespertino de jarras e talheres. Foi então que nasceram e foram se alongando, mesmo que truncadas, Magda e a sua vida.
Voltava Santa Rosa e ameaçava, zombando de Lavanda e Buenos Aires. Trinta de setembro. Sempre aparece e arrasta a primavera. Mas é necessário suportá-la como uma amiga e suar, quase boqueando, suores e umidades.
Agora era em Lavanda e era forçoso esperar a chegada estrondosa da única puta simpática, a que figura, com ofensa, no santoral de Gregório XIII.
Eu não lembrava ter conhecido outra mulher de coquetismo comparável. Nenhuma com o seu trovejar distante, de crianças brincando com foguetes, para logo presidir, tão alta, a nossa consciente respiração, com trovões que anunciavam o final do apodrecido mundo, para logo cessar e se afastar com um distante riso de carnaval.
Sabe-se que apenas uma vez desceu à Terra e foi para amar o tenente Glahn, lá em Sirilund da Noruega, atraída por engano.
Não encontrava alívio para a minha quase angústia, para meu mau humor, na cara sempre zombadora de Lamas. Eu o via se distrair com goles da cerveja que os alemães do bar sabem cortar os restos de espuma com minúsculas espátulas; costume velho, perfeição admirável. A cervejaria mostrava um falso alívio para o calor com suas paredes de madeira polida, com cabeças de cervos chifrudos, talvez feitos de papelão, mas convincentes. Desde o teto e de lugares não localizáveis, sussurravam ventiladores de vontade tão pretensiosa como incapaz.
Também lutavam contra o calor as jarras de porcelana com frentes metálicas e coloridas cenas de caça e do lar. Nós bebíamos jarra após jarra sem outro benefício que aumentar os suores, sem nos livrarmos da humilhação de passar entre mesas de homens ofegantes em mangas de camisa, de mulheres em blusas de amplo decote, para chegar ao mictório disputado e que já transbordava e invadia.
Havíamos nos permitido apenas afrouxar os nós das gravatas. As vozes subiam no alto lugar, teutão e cervejeiro, as vozes iam se sobrepondo lá em cima, grosseiras ou corteses contra o teto. Talvez descessem para se juntar às novas irmãs, talvez se ajudassem com a cacofonia das capas das jarras, que rebatiam a impaciência e o tédio.
Longe, em um local invisível, começou a tremer uma canção em duas vozes:
Mein hutt er hat drei ecken,
drei ecken hat mein hutt,
und hat er nicht drei ecken,
dann ist er nicht mein hutt.
– Puta que pariu — disse, suavemente, Lamas. — Já começaram. Se o público se contagiar, eu vou embora. Agora anoitece e pode ser que refresque. E eu contava sobre Magda.
– Não enrole. Não importa. Vão se desafogar com doces canções insuportáveis.
– Pode ser. Peça outra rodada, eu pagarei presenteando-te com uma confissão que havia reservado para o leito de morte. É que Dante me arrebenta. Algo assim.
– Comediante, tragediante — eu ri, enquanto procurava o garçom do colete branco e da amarela cabeça cúbica que havia se perdido em meio à fumaça que tomava a cervejaria, quase comovido pelos ventiladores.
– Prosit, como latem os gringos — disse Lamas, erguendo a sua nova jarra. — A história vai durar enquanto não chega o temporal que nos prometeram para hoje.
– Manda; escuto, obedeço.
– Não posso jurar que se chamasse Magda, Magdalena. Talvez fosse assim, talvez o nome tenha sido inventado por algum dos parasitas, já bêbado. Um dos tantos que se acumulavam ao redor da mesa, tão generosa. Ela e o capitão das tropas de Flandres. Senhor capitão. Alguém interrompeu os soluços para murmurar: María de Magdala e samaritana, tudo junto em sua beleza. Algo do tipo. Dá de beber ao sedento. E mais eu não sei. Todos os imbecis festejamos, rindo. Mas não ela, a Magda recém-nascida, e tampouco o militar que tinha o perfil de uma escura medalha. Não, nem negro nem mestiço. Moreno. E um corpo desses de levantar pesos. Como se não tivesse escutado. Deu um peteleco na garrafa de whisky, como que oferecendo. Se continuamos com as jarrinhas, sou capaz de dizer que o idiota parecia um nobre dessas nobrezas indígenas que viviam no continente até que apareceu, por acaso, a peste genovesa, dom Cristóforo, e arrastou centenas de delinquentes espanhóis em busca de ouro e mais ouro. Veja, os que agiram bem foram os charrúas, os que comeram, às brasas, o Díaz de Solís.
– A cerveja pelo jeito já subiu. Nada de textos de história. Quero mais sobre María Magdala e o milico. (…)