Páginas de um rio (II) — Ricardo Piglia

Iuri Müller
4 min readMay 14, 2021

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Hotel Almagro

Quando vim viver em Buenos Aires, aluguei um quarto no Hotel Almagro, na esquina de Rivadavia e Castro Barros. Estava terminando de escrever os contos do meu primeiro livro e Jorge Álvarez me ofereceu um contrato para publicá-lo e me conseguiu trabalho na sua editora. Preparei para ele uma antologia da prosa norte-americana que ia de Poe a Purdy e com o que me pagou e com o que eu ganhava na universidade pude me instalar e viver em Buenos Aires. Trabalhava, naquele tempo, na cátedra de Introdução à História da Faculdade de Humanidades e viajava todas as semanas a La Plata. Havia alugado um quarto numa pensão perto da estação rodoviária e ficava três dias por semana ministrando aulas em La Plata. Tinha a vida dividida, vivia duas vidas em duas cidades como se fosse duas pessoas diferentes, com outros amigos e outras circulações em cada lugar.

O que era comum, no entanto, era a vida de quarto de hotel. Os corredores vazios, os espaços transitórios, o clima anônimo desses lugares em que sempre se está de passagem. Viver em um hotel é a melhor forma de não cair na ilusão de ter uma vida pessoal, de não ter, quero dizer, nada íntimo a contar, a não ser os rastros que deixam os outros. A pensão em La Plata era um casarão interminável que se transformou em hotel barato, tocado por um estudante crônico que vivia de sublocar os quartos. A dona da casa estava internada e o tipo enviava todos os meses um pouco de dinheiro a uma caixa de correio no hospício de Las Mercedes.

O quarto que eu alugava era confortável, com uma sacada que se abria para a rua e um teto muito alto. Também o quarto do Hotel Almagro tinha um teto altíssimo e um janelão que dava para os fundos da Federação de Boxe. Os dois quartos tinham um roupeiro muito parecido, com duas portas e prateleiras forradas com folhas de jornal. Uma tarde, em La Plata, encontrei num canto do roupeiro as cartas de uma mulher. Sempre se encontram rastros dos que estiveram antes quando se vive num quarto de hotel. As cartas estavam escondidas em uma fresta do armário, como se alguém quisesse esconder um pacote com droga. Estavam escritas em uma letra nervosa e não se podia entender quase nada; como sempre acontece quando se lê a carta de um desconhecido, as alusões e os temas implícitos são tantos que podemos decifrar as palavras, mas não o sentido ou a emoção do que está acontecendo. A mulher se chamava Angelita e não queria que a levassem a morar em Trenque-Lauquen. Havia fugido de casa e parecia desesperada, tive a impressão de que se despedia. Na última página, com outra letra, alguém havia escrito um número de telefone. Quando liguei, me atenderam no plantão do hospital de City Bell. Ninguém conhecia nenhuma Angelita.

É claro que logo esqueci do assunto, mas um tempo depois, em Buenos Aires, deitado na cama do quarto de hotel tive a ideia de inspecionar o roupeiro. Em uma fresta, num dos cantos, havia duas cartas: eram a resposta de um homem às cartas da mulher de La Plata.

Explicações eu não tenho. A única explicação possível é pensar que eu estava imerso em um mundo partido e que havia outros dois que também estavam metidos em um mundo partido e passavam de um lado a outro, tal como eu, e que por essas estranhas coincidências que o acaso produz as cartas haviam me alcançado. Não é tão estranho se deparar com um desconhecido duas vezes em duas cidades; mais estranho parece encontrar, em dois lugares diferentes, duas cartas de pessoas que estão conectadas e que nos são desconhecidas.

A casa de pensão em La Plata ainda existe, e ainda segue por lá o estudante crônico, que agora é um velho tranquilo que continua sublocando os quartos a estudantes e viajantes do comércio, gente que passa por La Plata seguindo a estrada do sul da província de Buenos Aires. Também o Hotel Almagro continua o mesmo e quando caminho pela avenida Rivadavia, na direção da Faculdade de Filosofia e Letras da rua Puán, sempre passo pela entrada e me lembro daquele tempo. Em frente está a confeitaria Las Violetas. É preciso ter por perto um bar tranquilo e bem-iluminado quando se vive num quarto de hotel.

De Formas breves (Anagrama, 2000).

Ricardo Piglia nasceu em Adrogué, em 1941, e morreu na cidade de Buenos Aires, em 2017. Levou a cabo, ao longo de décadas de escrita de ficção, uma das obras mais relevantes em língua espanhola da segunda metade do século XX e dos primeiros anos do nosso século. Foi professor universitário (em La Plata e Buenos Aires, também nos Estados Unidos), ensaísta, tradutor e crítico literário; escreveu sobre as obras de Roberto Arlt, Juan Carlos Onetti e Jorge Luis Borges, entre muitos outros. É autor de, por exemplo, Respiración artificial (1980), Formas breves (1999) e Los diarios de Emilio Renzi (2015–2017).

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