Páginas de um rio (I) — Ida Vitale

Iuri Müller
2 min readMay 7, 2021

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Ida Vitale nasceu em Montevidéu em 1923. Escreve poesia desde os anos 1940 e dedicou-se também ao ensaio e à crítica literária. Publicou, entre outros volumes de poemas, Cada uno en su noche, de 1960. Viveu exilada no México e, mais tarde, nos Estados Unidos, antes de retornar ao Uruguai. Recebeu o Prêmio Cervantes, o mais importante em língua espanhola, em 2018. A breve seleção que aqui se apresenta recorta poemas de distintos livros e momentos da trajetória de Ida Vitale.

Acidentes noturnos (Antepenúltimos)

Palavras minuciosas, se te deitas
te comunicam as preocupações.
As árvores e o vento te argumentam
juntos, dizendo-te o irrefutável
e é possível até que apareça um grilo
que em meio à vigília da tua noite
cante para indicar os teus erros.
Se cai um aguaceiro, vai dizer-te
coisas agudas, que cortam e te deixam
a alma, ai, repleta de alfinetes.
Apenas abrir-te à música te salva:
ela, a necessária, te encaminha
um pouco menos árida ao travesseiro,
suave delfim disposto a acompanhar-te,
longe dos cansaços e das queixas,
entre os estranhos mapas da noite.
Brincas de acertar as sílabas precisas
que soam como notas, como glória,
que ela aceita para que te deitem
e supram os destroços dos teus dias.

Aclimatação (Sueños de la constancia)

Primeiro te recolhes,
te estreitas,
perdes alma em seco,
tentas chegar à água da vida,
iluminar uma mínima membrana,
uma folha pequena.
Não sonhar flores.
O ar te sufoca.
Sentes a areia
reinar na manhã,
morrer o verde,
subir árido ouro.

Mas, mesmo sem ela saber,
desde alguma margem
uma voz se compadece, te molha
breve, alegremente,
como quando tocas
um galho baixo de pinheiro
já terminada a chuva.

Então,
contra a surdez
te levantas em música,
contra o árido, jorras.

Este mundo (Cada uno en su noche)

Só aceito este mundo iluminado,
certo, inconstante, meu.
Só exalto o seu eterno labirinto,
e sua luz segura, mesmo que se esconda.
Desperta ou entre sonhos,
a sua grave terra piso
e é a sua presença em mim
a que floresce.
Há um círculo surdo,
talvez limbo,
onde às cegas aguardo,
a chuva, o fogo,
desencadeados.
Por vezes sua luz muda,
é o inferno;
outras, raras vezes,
o paraíso.
Alguém poderá talvez
entreabrir portas,
ver mais além,
promessas, continuidades.
Eu apenas o habito,
dele espero,
e há assombro suficiente.
Nele estou,
permaneço
renasceria.

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