O fim de Higinio Gómez (poema de Juan José Saer)
Entrou no hotel ao anoitecer.
No mês de outubro,
e a essa hora, no coreto do boulevard, entre o hotel
e a estação, vai a luz de néon dos letreiros
luminosos a perfurar, intrincadamente, de um modo suave,
as glicínias.
Entrou sem olhar para trás
sob a placa azul,
levando uma pasta na mão direita
e dois tubos de comprimidos no bolso.
No outro dia, o de sempre: a mulher da limpeza
bateu na porta perto das quatro, para arrumar a cama
antes de ir embora, e como ninguém
respondia
voltou com o gerente e o guri meio bobo
que ali ficava para comprar cigarros e coisas do tipo aos clientes
e quando abriram a porta o encontraram:
todo vestido,
deitado na cama, com os sapatos nos pés, e os tubos vazios
de barbitúricos sobre uma mesa insignificante grudada à parede.
A pasta não continha nada dentro, estava também vazia. Depois a autópsia mostrou que a morte
havia acontecido perto das nove,
ou seja logo depois de ter entrado,
de modo que ao atravessar o portal, sob a luz azul
do letreiro, ao pagar de imediato o quarto
que alugava, segundo ele, por uma noite, ao entrar
no hotel, deixando atrás, do outro lado da rua,
e um pouco antes da estação, as glicínias,
já sabia que entraria, trancando a porta com duas voltas,
e que se servindo um copo d’água,
tomaria os dois tubos de comprimidos.
Talvez se apressasse para não se arrepender,
porque com vinte e tantos anos, e mesmo aos dezessete,
antes de ir para a Europa, quando fundou na cidade a revista El Río,
havia sido um homem apaixonado. Passou vários anos entre Londres e Paris
e na volta se estabeleceu em Buenos Aires como jornalista.
Vinha de uma família tradicional, mas decadente,
passou a infância numa casa do sul,
entre retratos militares, mates e louças de prata,
com uma glicínia e um poço no meio do pátio,
de onde surgiam fileiras de cômodos.
Depois soubemos que antes de entrar no hotel havia deixado uma carta
para Washington Noriega, que havia sido para ele uma espécie de mito,
uma espécie de mestre ou de guru na juventude,
mas que havia, ao final, lhe retirado o cumprimento.
Entre outras coisas parece que dizia na carta
que naquela idade não podia distinguir
entre o que outros chamam a razão e seus contrários
e que, mais do que nada, não tomasse a carta como uma agressão.
Minhas pobres tardes, dizia, Washington minhas pobres tardes chegam ao fim.
Abandone-se, se pode alguma vez, você que é um velho, à piedade. Abandone-se
Saiba que não peço nada para mim
porque quando receba essa carta já estarei morto.
Isso antes de entrar no hotel, ao anoitecer,
antes do corpo todo vestido, estirado sobre a cama,
antes de que os dedos do gerente, com gentileza profissional e algum
tremor, comprovassem que o pulso do seu cliente já não batia.
O enterro foi penoso porque não havia quase ninguém a se avisar. Eu mesmo soube
por acaso, ao receber no jornal a página policial,
e algo me disse ao coração que não se tratava de um simples homônimo.
Por sorte a família tinha a propriedade de um jazigo
e depois de trâmites trabalhosos, da autópsia humilhante,
pagamos um enterro de terceira categoria, eu e os gêmeos Garay,
Adelina Flores, sua velha amiga, e Horacio Barco, que o detestava.
Não há lugar
não há lugar neste mundo para a piedade,
disse a voz de Washington Noriega na manhã melodiosa.
Ele nos esperava na porta do cemitério, fumando um cigarro Colmena.
Eu havia evitado chamá-lo
para poupar a humilhação de ser eximido da sua parte dos gastos
e por medo de que a fúria
sem redenção do mestre ofendido contra o seu discípulo
desse o último tapa na face já dura do morto.
E não há lugar
não há lugar neste mundo para a piedade,
disse sua voz na manhã melodiosa. Eis aqui um homem
morto, a quem odiava há muitos anos.
E não há em todo o meu corpo
nada, nem isso (e apertou com a unha do polegar a gema do indicador) de piedade. Falou por dois ou três minutos,
com certo mau humor. Ao redor, os gêmeos, idênticos, vestidos de branco, os dois com as mãos cruzadas na altura do pênis,
tinham a cabeça erguida na direção contrária, como duas cariátides, cheirando o vento como se esperassem a chegada de uma nave celestial ou de um anjo.
Nos separamos na porta do cemitério.
Almoçamos com Horacio Barco
e jogamos bilhar a tarde inteira.
Essa noite, depois, eu me lembro,
(mas não sei aonde íamos) corremos duas quadras
sob a chuva e entramos, todos molhados, em um café.
Abandone-se, você que é um velho, à piedade.
Abandone-se.
Abandone-se, nem que seja por um só momento.
Havia escrito poemas longos,
narrativos, e demasiados aforismos. E, como tradutor, deixou
numerosos rascunhos, exercícios, fragmentos, todos escritos a lápis,
de livros que outros mais eficazes traduziam em quinze dias
e mandavam rapidamente às editoras. E depois: as drogas,
os desvios sexuais, o masoquismo consistente em desdenhar os talentos
perfeitamente reconhecidos
que publicavam um romance por ano, passavam o tempo entre
Cuba e Paris
e assinavam declarações
nas revistas literárias e políticas do mundo inteiro.
Não deixou sequer umas linhas para Adelina. Pediu uma semana de folga
na redação do jornal, viajou toda a noite no trem El Rápido
e, segundo o que se deduziu depois,
caminhou o dia inteiro percorrendo a cidade,
almoçou no restaurante El Tropezón, em frente à delegacia,
e passeou durante a tarde pela beira do rio e pela ponte.
Deve ter sentido muito sono para tomar os dois frascos de comprimidos,
se pensamos que havia viajado toda uma noite
para chegar a uma cidade desolada
onde apesar de ter vivido por anos praticamente não conhecia mais ninguém. Nenhum rosto familiar
apenas os rostos já sem hálito que nos rodeiam, pálidos,
as caras já mortas que não despertam nenhuma admiração,
o fim do amor a favor da realidade. Fachadas, corpos, cheiros sem nenhuma memória, nem do passado nem do porvir,
o grande deserto das cidades se abrindo para um abraço de morte,
como um órgão pétreo, planetário, sem água, abandonado.
Abandone-se.
E eu não espero nada para mim, porque quando receber essa carta eu já estarei morto.
Eis que estou aqui, agora,
anos depois, lembrando-o, tão morto para ele,
como ele esteve morto
para os dedos brancos do gerente que agarraram o seu pulso,
ele, que nos enterrou quando deixava para trás as glicínias
e pagava o quarto simulando pernoitar
para seguir depois para o norte,
morto com as árvores deste outubro,
mais exteriores que o céu estrelado,
agonizante desde que pegou o ônibus para viajar toda a noite,
desde que entrou no hotel ao anoitecer,
o homem que carregava dentro de si
um pátio com um poço e lembranças europeias,
mortos quando a porta se abriu
e o idiota do hotel
que espiava as hóspedes pelas claraboias e se masturbava no banheiro dos fundos,
viu estirado sobre a cama o homem todo vestido,
com as mãos abertas e os sapatos lustrados.
Assim vamos semeando uns aos outros
nossa noite
solidária.
~
De El arte de narrar: poemas, 1977.