O amanhecido (Juan José Saer)

Iuri Müller
2 min readAug 8, 2019

--

Por alguma razão que desconheço, sinto paixão pelos baralhos. Como o jogo me fez ir perdendo, com o tempo, o pouco que eu tinha, a cada amanhecer, quando volto para casa depois de passar toda a noite em uma mesa de jogo, me digo que essa será a última vez, que as cartas mastigam a minha vida, e quando me desperto, geralmente depois do meio-dia, trato de ocupar meus pensamentos com outra coisa que não sejam os naipes; mas, ao cair da tarde, quando as pessoas voltam, cansadas, do trabalho, e as vejo passar diante da janela, ao cair da tarde, quando o dia curto e vazio começa a se extinguir, algo em mim se coloca, devagar, em movimento, algo que cresce dentro como o medo ou a cólera, e algumas horas mais tarde já saio de casa (se ainda me resta algum dinheiro) com o passo aparentemente tranquilo, e começo a percorrer as ruas arborizadas em direção à mesa de jogo.
De vez em quanto amanheço nessa atividade. Ao voltar, nas manhãs frescas, pelas calçadas de cor cinza que as donas de casa lavam com baldes, desviando as latas de lixo já vazias, sob as árvores que voltam à vida, me assalta o sentimento de que o mundo e eu caminhamos na direção oposta, e de que nossos encontros ocasionais transcorrem em meio a uma mútua indiferença. E, em seguida, esse sentimento dá lugar ao horror: a contrapelo do mundo, na manhã que sobe lenta, me assalta a certeza de que nada é possível. Esses fantasmas que encontro na rua se movem, sem se dar conta, em uma zona de aniquilação. E a minha vida inteira — a minha, sim, minha vida inteira — não me parece menos passageira e irreal. Jogar com as cartas ao longo da noite é, sem dúvidas, uma forma de morte. Amanhecer é nascer: em um mundo que transcorre vazio, absurdo e exterior, e no qual a lógica de satisfação que impera não faz senão aumentar a distância e o escárnio. O horror que me assalta é o de vê-lo inteiro, fora de mim, e por trás da sua aparente solidez, mais frágil e fugaz que a lembrança de um amnésico. É assim que acontece, a cada amanhecer, o meu nascimento. E que não se diga depois que o pranto do recém-nascido seja tão somente um sinal vegetativo. (1975)

Juan José Saer, in Papeles de trabajo II. Seix Barral, 2013.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

No responses yet

Write a response