“Discussão sobre a palavra zona”, Juan José Saer

Iuri Müller
4 min readNov 19, 2020

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Lugar: um restaurante chamado “El Dorado”, do outro lado da ponte suspensa, na estrada da costa; na verdade, um cubículo desparelho de lata, dividido em dois por um tapume de madeira, com uma varanda de madeira que dá para a estrada e um pátio traseiro repleto de árvores, separado do rio por uma cerca de troncos. Depois da cerca há um declive abrupto, o barranco e em seguida o rio. Na outra margem, casas altas sobre pilares de madeira, que dão suas frágeis fachadas ao rio.

Época: um dia de fevereiro de 1967, às duas da tarde.

Temperatura: trinta e sete graus à sombra.

Protagonistas: Lalo Lescano e Pichón Garay. Ambos nasceram no mesmo dia do mesmo ano, 1940, mas, enquanto os membros da família Garay afirmam descender do fundador da cidade, Juan de Garay, no dia em que Lalo Lescano nasceu umas vizinhas tiveram que juntar dinheiro para mandar a mãe de Lalo ao hospital, já que o pai, garçom num restaurante, demorou horas para voltar para casa, supõe-se que ocupado com corridas de cavalos.

Circunstância: almoço de despedida, porque Garay viajará, dentro de alguns meses, para a Europa, onde viverá por alguns anos.

A discussão começa quando Garay diz que vai sentir saudade e que um homem deve ser sempre fiel a uma região, a uma zona. Garay fala olhando na direção da água — estão sentados em uma mesa protegida do sol pela sombra das árvores — enquanto amassa com dois dedos um pedaço de papel de jornal que serviu como embrulho para os peixes assados. Nem Lescano nem Garay são sibaritas, mas vão a esse restaurante (mesmo que nenhum admita) porque sabem que, anos atrás, foi frequentado por Higinio Gómez, César Rey, Marcos Rosemberg, Jorge Washington Noriega e outros que eram tidos como a vanguarda literária da cidade. Quando o pedacinho de papel está bem amassado, Garay o joga na direção do rio, sem olhar para ver onde cai. Lescano segue a trajetória da bolinha cinzenta com o olhar e então diz que não há regiões, ou que na verdade é difícil precisar o limite de uma região. E explica: onde começa a costa? Em nenhum lugar. Não há ponto preciso em que se possa dizer que começa a costa. Escolhamos, por exemplo, duas regiões: a pampa gringa e a costa. São regiões imaginárias. Há algum limite entre elas, um limite real, para além do que os manuais de geografia inventaram para trabalhar com comodidade? Nenhum. Ele, Lescano, está disposto a admitir alguns fatos: a terra é diferente, há outra cor, e se na pampa gringa se planta trigo, linho, alfafa, na costa, no entanto, ao que parece a terra está mais apta para o arroz, o algodão, o tabaco. Mas, qual é o ponto preciso em que se deixa de plantar trigo e se começa a plantar algodão? Em termos étnicos, a pampa gringa está composta em geral por estrangeiros, italianos principalmente, enquanto na costa predominam as famílias nativas. Mas, por acaso, não há italianos na costa e nativos na pampa gringa? A pampa gringa é mais forte desde o ponto de vista econômico e sabemos com precisão que, enquanto ela fica mais perto de Córdoba, a costa, por sua vez, abrange Entre Ríos e Corrientes. Tudo isso supõe um princípio de diferenciação, admitido. Mas, não existe também a possibilidade de definir a pampa gringa como uma costa que está mais longe de Entre Ríos (a parte da costa mais afastada de Entre Ríos, digamos), uma costa em que, pelas características do solo, se planta mais trigo que algodão? Eu admitiria que se trata de uma região diferente se houvesse a chance de demarcar um limite com precisão, mas essa chance não existe. A proximidade do rio não é um bom argumento porque há partes da costa que não estão nas proximidades do rio, e ainda assim, no entanto, chamam de a costa. Não há nenhum limite preciso: o último arrozal já se encontra no interior dos campos de trigo, ou vice-versa. Usemos, se queres, outro exemplo: a cidade. Onde termina o centro e onde começam as periferias? A linha divisória é apenas convencional. O boulevard Gálvez, digamos. Mas qualquer um de nós sabe muito bem, porque nasceu aqui e viveu aqui e conhece, portanto, a cidade de memória, que ao norte do boulevard Gálvez há muitíssimas coisas que poderiam estar, tranquilamente, no centro: prédios altos, edifícios, comércios, boas famílias. E a cidade, onde ela termina? Não na polícia rodoviária, porque as pessoas que vivem depois da polícia rodoviária dizem, quando perguntadas por onde vivem, que moram na cidade. Portanto, não há zonas. Não entendo, diz Lescano, como se pode ser fiel a uma região, se não há regiões.

Não concordo, diz Garay.

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Juan José Saer: “Discusión sobre el término zona”, La mayor, 1976.

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