Deambulação
Gosto da palavra deambulação. Não é o mesmo que caminhar a esmo, na deambulação a caminhada parece sugerir curiosidade, quem sabe mesmo um objetivo semiconsciente no andar que busca um destino não estabelecido de antemão quando se sai à rua. Por vezes, o sentido da caminhada se revela em seguida, depois de percorrer cinco, seis quadras, de deixar para trás uma galeria ou uma praça; quando o rumo se revela de todo, a verdade é que a deambulação deixa de existir, a caminhada busca a rota precisa, um ponto final, e a deambulação terá ficado restrita aos primeiros passos, ao ensaio em aberto. Gosto também de perscrutar, sempre que subo a Rua da Ladeira, as vitrines de duas livrarias, uma em cada lado da via, na mesma altura do íngreme relevo que leva à Praça da Matriz. Há meses não passava por ali com alguma disposição e mínima tranquilidade para parar e olhar. A livraria da calçada do lado direito seguia fechada, mas sei que não se trata de um encerramento definitivo. A da esquerda estava de portas abertas: lá dentro, o proprietário conversava com alguns frequentadores de sempre perto do balcão, todos ao mesmo tempo, em sobreposição de vozes. Uma criança caminhava, falando sozinha, entre os balaios de saldos. Não entrei, me limitei a observar os livros expostos junto ao vidro, os pés ainda na calçada. Como sempre, um o outro me fisgam, em outro momento forçariam a minha entrada, nem que seja para consultar a contracapa ou a marcação do preço na primeira ou na última página. Mas a livraria que segue fechada, a do outro lado da rua, para mim é mais sedutora, mesmo que sua vitrine seja sempre comedida; a graça está sempre dentro, nas estantes da esquerda de quem entra, nas prateleiras baixas, em frente, quase ao rés do chão ou, ainda, no que se estende talvez desorganizadamente ao redor do balcão de atendimento (livros que chegaram há pouco, algum destaque pinçado pelo livreiro, edições novas que ali durarão pouco tempo). Percebi com algum alívio a movimentação na livraria da esquerda, mas foi um alívio menor do que pude sentir minutos antes, nos primeiros metros da subida, logo depois de deixar para trás a Rua da Praia. Foi quando vi que o bar com mesas na rua não só estava aberto, depois de tantos meses (quatro ou cinco, penso) de clausura, mas que um rapaz, de boina na cabeça e os dois cotovelos sobre a mesa, sem se dedicar a mais nada, esperava por um chope, que um dos garçons alcançaria em um par de segundos, pois já era possível vê-lo, com a bandeja, deixando a área interna do bar. A cena, por certo ainda descabida, fora de lugar, não me agredia por um claro componente de despretensão. Foi uma sucessão de curtos alívios porque, em algum momento, os que caminhamos, de tempo em tempo, desconfiados, amedrontados, pelas cidades, pensamos que disso tudo sobraria pouco ou nada; que além da tristeza desmedida das centenas de mortes narradas em cada lugar, o que viria depois seria a visão de um cenário devastado, desprovido dos sutis pontos de referência que tornam possível a identificação de cada um com os lugares pelos quais caminha, todos os dias ou na deambulação de uma terça-feira pela manhã, dos entardeceres dos sábados. Não será assim, quem sabe, mas tampouco encontraremos o mapa de antes; na mesma caminhada que me mostrou livrarias abertas e livrarias fechadas, bares que timidamente reabrem para oferecer o primeiro chope do semestre, pude ver um sem-número de grades que não devem tornar a subir (como a da minúscula loja em que comprava meias, numa das galerias do mesmo Centro, e que deve ter desistido de vez, dando lugar a uma opaca fachada de papel pardo), de lugares que serão lacunas e espaços vazios por mais uns quantos meses, se não for o caso de nos resignarmos com portas fechadas em definitivo. De março a agosto, caminhei por uma cidade que revelou distintas caras, em percurso cambiante e não linear: a cidade deserta, congelada de dor e medo, sem passantes, quase sem ruídos; a que parecia habitar outro mundo ou país, em tentativa patética de desviar os acontecimentos e condições inevitáveis, ainda mais triste que a primeira; a que se abria, desconfiada, para tentativas de uma nova rotina possível, entre outros registros e sobreposições, todos atormentados e incertos. É certo que os que caminhamos veremos, nos próximos meses, uma cidade violentamente mais empobrecida, com gente a vender e recolher o que pode nas calçadas de quase todos os bairros, com grades que descem com pouca perspectiva de levantar, com descolorido cansaço nas esquinas mais sujas, com permanente improviso para uns e outros. Em meio à fadiga, ao flerte com o colapso e aos fracassos arrastados por todos nós, poder contar — depois — com singelos pontos de referências para aquele ou aquela que passa não deixa de ser, afinal, um ligeiro respiro para aguentar e caminhar.